texto original publicado em Matajuegos no dia 21 de agosto de 2019
Um jogo com identidade latino-americana tem que se passar no Caribe? Será que colocar chapéus mexicanos em alguma das fases dá conta do serviço? Não deveríamos simplesmente fazer jogos “universais” (como fazem os Estados Unidos)? Neste texto exploraremos algumas das confusões mais comuns encontradas na busca de uma identidade latino-americana de videogame e indicamos o que os jogos podem aprender com o realismo fantástico e outras vanguardas artísticas.
O que significa fazer um jogo com identidade latino-americana? Afinal de contas, um estúdio da Califórnia pode publicar uma aventura gráfica baseada na mitologia asteca e na revolução cubana, enquanto um estúdio argentino pode remasterizar um jogo de estratégia e conquista fundamentalmente estadunidense.
Cercas
Muites desenvolvedores latino-americanes1 sentem que sua identidade regional são cercas limitadoras: um convite a fazer jogos poucos imaginativos sobre temas muito específicos, enquanto fora dessas cercas há um mundo fantástico de pessoas fazendo jogos... “universais” sobre qualquer tema que lhes dê na telha. Todavia, esse suposto universo também é outro conjunto de limitações muito específicas.
São as cercas estadunidenses, europeias, japonesas... e, por razões de poder, dinheiro e influência cultural, os desenvolvedores de jogos terceiro-mundistas fazemos games dentro dessas cercas, que nos parece ser o “universo possível”, porque não imaginamos que poderia haver algo além desses limites. As possibilidades criativas dos jogos latino-americanos são tão imensas quanto a dos jogos estadunidenses, mas não percebemos isso porque só vemos a superfície, onde há, sabe-se lá, clones de Candy Crush com caipirinhas2 e bolas de futebol no lugar de guloseimas.
Ora, na verdade a cultura não funciona como cercas com margens discretas. No entanto, essa visão dos jogos do norte do hemisfério como sendo “universais” tem sido imposta como senso comum, e vale a pena desafiá-la com olhares alternativos.
Cor local
“O escritor argentino e a tradição” é um ensaio de Jorge Luis Borges contra a “cor local” na literatura argentina3. Segundo o romancista, a literatura argentina precisa apreciar mais suas virtudes intelectuais e originalidade criativa e se entregar menos às temáticas previsíveis da vida gauchesca, de suas populações marginais e do argentinismos.
Os gaúchos que cantam sobre a honra de seu povo e da vida nos pampas, como Martín Fierro, são um invento de José Hernández e outros intelectuais de classe alta, enquanto os gaúchos reais também cantam sobre filosofia, cultura e tudo mais que sentem vontade. Borges traz uma observação astuta do historiador Edward Gibbon: o Alcorão nunca faz menção a qualquer camelo. Há camelos mencionados no Alcorão? Provavelmente sim. Edward Gibbon disse que não havia nenhum? Provavelmente não. A observação de Borges é mais sagaz do que correta, mas demonstra um ímpeto criativo que vale a pena ser resgatado.
Se o seu objetivo for redefinir a identidade nacional em torno da modernização capitalista, faz sentido escrever sobre um gaúcho marginal que fala sobre a vida gauchesca e eventualmente se reconecta com a civilização. Caso o seu objetivo seja maximizar a sua clientela na Steam, talvez tenha sentido criar um jogo com os traços mais populares e genéricos e ambientá-lo em seu país, para ver se ele parecerá exótico ao público estadunidense, destacando-se no meio da multidão.
Agora, se seu objetivo for expandir seus horizontes artísticos, examinar como a influência primeiro-mundista pode estar limitando a sua criatividade ou descobrir novas dimensões da experiência latino-americana... Aí a coisa se torna mais interessante e as fórmulas pré-fabricadas deixam de servir.
Vanguardas
O realismo fantástico é um dos movimentos artísticos latino-americanos mais famosos do século XX, mas não consiste em romances sobre jogadores de futebol nem pinturas de comidas apimentadas. Algumas de suas características são:
- mostrar coisas irreais e estranhas como se fossem comuns e cotidianas,
- representar membros das classes populares,
- e propor um modelo circular ou fragmentado do transcurso do tempo.
Nada disso é típico ou exclusivamente latino-americano. Não há como viajar aos anos 1930, observar a cultura latino-americana e prever que a vanguarda artística começaria a escrever sobre o tempo ser uma roda. O realismo fantástico pegou o conceito de tempo circular e o transformou numa característica da cultura da América Latina, e não o contrário. Isso é válido para qualquer movimento artístico ou tendência de criação de games com raízes geográficas conhecidas. Os romances visuais pegaram um tipo de interação com NPCs e o transformaram numa marca japonesa. Wolfenstein 3D e DOOM utilizaram uma perspectiva de câmera e de esquema de movimentação e os transformaram em parte da cultura e do militarismo estadunidense. Seja lá o que definirá os jogos latino-americanos no futuro, essa coisa ainda não é realmente latino-americana. Precisamos fazer que nossos sejam jogos latino-americanos.
Considerações finais
Talvez algum dia nasça um movimento genuíno de jogos latino-americanos. Talvez já tenha nascido. Talvez surja um movimento mais geral de jogos do hemisfério sul. Talvez se forme um movimento hiperespecífico de jogos de algum município brasileiro. Caso desejemos que ele não nasça, podemos seguir operando como seres individuais que, cada um por conta própria, querem fazer parte do norte do planeta. Caso surja, ele não será definido por elementos superficiais previsíveis.
Teremos que construir de obra em obra, discutindo entre colegas, escrevendo manifestos, jogando títulos latino-americanos para absorver suas influências e identificar pontos fortes, pontos fracos e temas recorrentes.
Esse é um futuro do qual eu gostaria de participar.
Pessoas latino-americanas na linguagem neutra de gênero.
Adaptamos culturalmente alguns elementos do texto ao público brasileiro. Clique aqui para acessar o artigo original.
Retiramos a citação da tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Globo, 1998, v. I, p. 288-296.
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