SOBRE AS FOLHAS MIÚDAS ENTRE AS FRESTAS DO CIMENTO, A REVOLTA E O TERREIRO DA MÃE

Por Enguia ensaboada Uma revolta entretecedora só pode começar em um terreiro. Como assim? Arrancar toco encrustado com entretenimento, alegria e irresponsabilidade? Ainda mais no microcosmo do cotidiano? Se não for pra ser desejoso, para mim, não faz sentido revoltar. A revolução total é mitológica como tudo que o sistema vende. Ela pesa sobre tudo e inviabiliza que as folhas cresçam no jardim das peculiaridades. A totalidade é racional, instrumental, mata a razão erótica, espontânea, livre e desmedida. Sufoca as miudezas, não deixa as teias entrelaçarem para conquistar territórios de resistência. Desse modo, a meu ver, anarquia é revolta. As pequenas folhas, todos os dias, nos encantam com seu fazer ininterrupto: espaçando, conquistando lugares, okupando, des-re-territorializando, produzindo espaço, pertencendo a regiões e vivenciando o terreno. Por que fazem isso? Porque querem fazer. Contra quem fazem isso? Tudo que cimenta o caminho. Muito mais filosofias da intuição e da experiência existencial do vivido, do que filosofias do espírito absoluto de progresso. Elas não dizem gritando. Ensinam com silêncio e permanência. Com sabedoria de cavar a superfície lisa a cada instante, tendo certeza que vai superar o impermeável, destituir a totalidade, por já estarem nos fazeres diários, nos ciclos envolventes e na negação dos modelos e hierarquias dominantes. Jamais deixam-se engolir seco, empurrar de goela abaixo... soltam amarras, espalham sementes ao vento, ao desconhecido, indistintamente, querendo alcançar as peculiaridade topográficas. Bombas contra paredes, com fogo, água e ajudantes, fazem a festa da trans-territorialidade anárquica. Retomar o que já foi, desmanchar o que iria ser, negar o que endureceu, o que mortificou, parasitou, se entregou a esclerose pesada do condicionamento, o um sobre o macro... paralisia estatista, domesticação e reprodução mecanizada dos mínimos quereres e fazeres. Revolta não é revolução, que é, recriar fluxos evolutivos. Revolta nega o progresso, o desenvolvimento, o aprimoramento, o melhoramento... a civilização e suas teogonias teleológicas. Ela é mato, roça anarca, espinhos e flores. São folhas nas fissuras das paredes endurecidas de ordem alucinantes, aliciantes e lineares. Ela é caititu em bando, cobra em noite de luar, algazarra de macacos, voo de urubu, sinuosa como o rio Juruá. Revolta retorna à origem (volta ao âmago onde tudo iniciou) – [no caso do Juruá, aos Andes] -, refaz o passado num futuro primitivo, para acabar com esse amanhã eterno do reprodutível maquínico, num dia amanhã de ontem antes da domesticação. Revolta é animal, visceral, intensa, constante, imediata, contínua, eterna e errante. Recriar e refazer o tempo todo. Não conserta nada, não reforma ninguém, não adapta para servir à nada. Gambiarras úteis, para vida, para existir, para se manter vivente nas querências, não esperar e guardar para amanhã, reprimindo energias e fluxos de alegria solar. É torrente que rebenta as lisas barragens. Revoltar é tomar de volta o que perdemos: x selvagem. É o nomadismo de todxs, não a andança heteronormativa patriarcal da civilização ocidental, do macho que domina a natureza. Mas de jogar fora o patriarcado, o tecnocentrismo e toda sua lógica especista, toda sua força unificadora que aliena até o caixão. É x nômade que reconhece a natureza em tudo, pra tudo e intensa, livre das mediações disciplinares. Nomadismo de mateirxs e peregrinxs, de mulheres com facão na mão, de homens com cesto no braço, de crianças com bamboleios, chicotes estalantes e flechas delirantes. Onde ela nasce? No terreiro da mamãe. Na mão que faz miúdo. No mexer na terra devagar, meditativo e consciente de que faz por querer fazer o diferente a cada instante. O canto de descanso, o canto do pássaro e o fungar dos insetos que mexem na terra. Um terreiro imemorial, que tá dentro de todxs, até dos que foram confinados em apartamentos e condomínios não comunais órfãos de vivências calorosas. Do seu umbigo ímpar, ao umbigo de quem estar do lado, também diferente, umbilicalmente se liga esse umbigo do mundo: o terreiro. Onde conversas vão e vem, palavras vãs, eternas dispersas no horizonte azul; para o céu; pra dentro, com amargura; pra fora, com petulância; para o lado, com desdém; para o horizonte, com sabedoria. Os pés no chão, descalços, acariciando a superfície irregular. Hora de pensar em comer, se mover para fazer. Juntos, deliciosamente entremeadas, as pessoas vão destituindo o sentido de trabalho (escravismo sistêmico), para um fazer embolado, que mais se aprende do que se ensina, se tiveres a verdade de acalmar as ordens externas. Uma cosmopolítica em cada ser, o enorme desafio anarca de não deixar linhas de poder permanecer e perecer as autonomias. Equilíbrio e vontade largando a segurança do barranco e caindo de cabeça no poço da liberdade. Barriga cheia, hora de jogar tempo fora, descronologizar, matar esse deus controlador. Sentar no chão e sujar a bunda, olhar para o céu, respirar fundo e pedir para o que te envolve sussurrar em seus ouvidos a música da eternidade, estranhamente fugaz da pequena vida que temos. Refletir sobre essa obscura cosmovisão, cosmogonia do mistério, da poeira estelar até a carne que pulsa, depois, a terra instintiva que repreende a carne de volta para gaia. No terreiro, esquece-se do imenso, do totalizante, das conexões estruturais, por um segundo de tempo. Vem uma amnésia quanto ao choro do nascido e o choro do túmulo, o aprender a andar e viver e o ter que deitar e morrer. Por um instante, só quer permanecer. Cosmologias assustadoras são negligenciadas. Agora é botar-se a andar, passo a passo, fazer e errar, criar e desmantelar, inventar e absorver, nutrir e saborear. Ir pra onde? Chegar onde? Virar para que lado? Não parar! Ir e errar! Errâncias que sem as fazê-las perece, seca e endurece. Fluidez no caminhar, atentx ao sacolejar da carruagem corpórea. Daí, o terreiro volta a ter seu papel transcendental de jogar pra fora, pra longe e para o sem fim. Ter terra. Ter eira. En-terrar. Tem seu papel imanente, de roda em espiral, círculo que não cessa de girar, circularidade em que todxs nos vemos, cantamos e sorrimos. Mas também, choramos, lamentamos e esbravejamos. Tocar o pandeiro, circular forma e ritmicidade, em espiral o Tum Tum, Tá / Tic, Tic, Ta / Tum Tum Tum. Revoltadx no terreiro, girando como galinha dos pés queimados. Re-Volte-se a tudo que aí está. Observe direito o que quer e o que está fazendo. Não tem jeito, revolte, bote-se a mover movente destrutivo... não reformar, nem recriar evoluções progressivas que aprisionam em palácios de cristal da elite vanguardista. Desmantele dominações, estruturas sistêmicas, trabalhos de sujeição, barreiras amordaçantes, deixe a criação anárquica se fazer. No chão é onde estão essas bases libertárias, no círculo do terreiro, no olhar na cara umx dox outrox. Depois de deitar e rolar na mãe, sujar o corpo, lavar a pele com a terra da pacha mama, todxs enterrados até as entranhas, é mais reluzente começar a ver o horizonte da anarquia. Ela tá bem perto e não querem ver. É no chão, nos círculos, nos diálogos, nas discussões, na política do poder-com, na negação do poder-sobre, nas fissuras dos muros quase impermeáveis. Uma grande teia de fios enrolados, embaraçados e com nós cegos. Somos uma linha dessa teia. Nosso caminho não é desembaraçar, é criar novos caminhos. Saber atravessar o deserto. Ir para longe. Esticar a teia para mundos outros. Análise de conjuntura, explicar de onde vem e ditar para onde vai e dirigismo para uma única direção, só vai fazer com que nós nos perdemos mais. Levantes, insurgências e marginalidades estão para além das linhas de força. Estão na nossa capacidade de embaraçar as coisas, travar sistemas, sabotar modelos e fissurar muros que segregam. De nó em nó, de teia em teia, de desordem em desordem, vamos desmontando o Leviatã, a colonialidade nossa de cada dia, o ecúmeno da dor, o medo da liberdade, a dominação dos corpos, a opressão do social. Do terreiro recriaremos as comunas, matando a família e a sociedade, a escola e a cidade, a agricultura e o trabalho, as máquinas e as religiões, as genealogias do fanatismo. Como? Se transformando em mãe, nos terreiros en-cantados [conforme ensinou um sábio C.], dos rifes de tambores e do sacolejar dos corpos abruptos de fome de vida. Onde eles estão? Longe demais para poderem ser incorporados aos sistemas. E a mãe? Debaixo de nossos pés, abraçada às folhas anárquicas, nos sustentando e instigando para retornar ao berço primitivo. Anarquia, amor, desejo e alegria!